segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Reticente


...não sei muito bem o que escrever sobre o processo de “O Olhar de Neuza”, mas estou aqui me forçando a isso, e seja lá o Deus quiser. Por isso já aviso que talvez esse seja um texto confuso, que reflete o seu autor, eu.
Quando ouço que sou um “ator-criador” isso me dá um comichão na alma, fico pensando se realmente sou um ator-criador... tenho tão poucas ideias, tão poucos desejos... ops, aqui está o meu primeiro ponto em comum (ou seria incomum?) com a Neuza. Neuza é a mulher que tem muitos desejos, muitas ideias, mas que não sabe o que fazer com elas. Eu talvez seja o contrário, não tenho muitos desejos e sei o que fazer com eles: NADA. O processo de “O Olhar de Neuza” me trouxe uma acomodação, por não estar na berlinda como ator. Isso é muito confortável, creio eu, para todo mundo. Não ser o foco do trabalho, ficar no escuro, longe dos holofotes... ops, como um ator pode se achar confortável longe dos holofotes? Acho que sou contradição pura, outro ponto em comum com Neuza. Será que eu sou Neuza? Acho que sim. Não, eu sou o Simão, a Neuza é a personagem. É, apesar de tratar sobre um tema específico de mulher de meia idade, me identifico muito com ela.
Gostei de ficar do outro lado, na plateia, durante esse processo, já que desde que estou na Cia. do Abração participei de quase todos os processos de criação dos seus espetáculos como ator. Assistente de direção? Será? Me coloquei nessa função e a princípio achei muito intrigante, talvez simplesmente por estar fora do foco de atenção, fora do “paredão”. Mas acho que não soube executar a função muito bem. Sempre podemos dar muito mais do que damos. Sou preguiçoso, me desinteresso muito fácil pelas coisas... peraí, isso aqui não era pra ser uma terapia. Não mesmo. Era pra ser um texto científico. Mas como falar da Neuza, uma mulher rodeada de conflitos, sem pensar nos meus próprios conflitos? Não sei. Mas vou tentar ser mais científico...
Minha função dentro do espetáculo, de assistente de direção, me trouxe alguns questionamentos importantes. O primeiro deles foi: O que faz um assistente de direção? Por algumas vezes me senti na função de “colocador de lenha na fogueira”. Gosto dessa função. Gosto de questionar, de “cutucar a onça com vara curta”. Tentei por em prática esse ateador de fogo, mas muitas vezes desisti. Acho que por me deparar em conflito com a Onça, a atriz que encarna a Neuza: Fabiana Ferreira (mais uma vez meus conflitos pessoais). Pois é. Meu conflito com a Fabiana às vezes parecia o conflito da Neuza com seu marido. Ou melhor, meu conflito com qualquer integrante da Cia. do Abração parece um conflito conjugal. Aquele amor tão grande que se desgasta com o tempo e cria algumas rachaduras, sendo necessário o tempo todo passar uma massa corrida. Não apenas para ficar bonita, mas para não crescerem as rachaduras e desmoronar a relação. E foi assim com todos do grupo durante o processo. Mas é assim sempre, acredito ser impossível separar o tal do “lado pessoal” do trabalho no Teatro, afinal, é uma arte que questiona muito o “ser humano”. Mas é difícil, e foi difícil.
Pensando bem, agora acho que o processo de “O Olhar de Neuza” não me trouxe uma acomodação não. Fez eu me questionar muito sobre minha vida, como a Neuza, e isso me deixou mal, com aquela tal “angústia no peito que sobe até a garganta e forma um nó apertado”. “Pensei até em desisti de tudo”, “jogar tudo pro alto e viver no meio do mato”. Procurei até um terapeuta. Viver em grupo dói. Fazer Teatro de Grupo é uma experiência que cutuca, alfineta o coração, a alma. Viver em grupo, grupo de verdade, me faz pensar tudo isso. Daí me pergunto: porque continuo fazendo? Será que apenas pelo motivo de ver que o espetáculo ficou lindo, tocante, um “tiro certeiro”? Fazendo mais analogias com o espetáculo: “muita gente consegue viver bem melhor sem querer achar um caminho, nem sequer suspeitar que seja necessário achá-lo”. Pois é. Pensar me traz os mesmos sentimentos que a Neuza sente. Que estranho. E o que será que faço com isso? Não sei, talvez não haja resposta pra todos esses questionamentos. E ir apenas caminhado...
Mas, continuando... e fazendo uma autocrítica: eu poderia ter exercido melhor a minha função de assistente de direção. E agora me defendendo da minha autocrítica: eu acho que fui até onde eu poderia ter ido. Às vezes o racional exige coisas que o emocional não deixa cumprir, e essa é mais uma contradição em mim. E talvez tenha sido bom, pois o resultado do espetáculo ficou muito bom. Não digo que ficou bom apenas por acreditar no nosso “filho”, mas por ver muito a reação da maioria do público. O trabalho agradou muita gente, e fez muita gente sair pensando sobre a sua própria vida. Neuza “mexeu” com as pessoas. Mas fico desconfiado com toda essa “bondade” do espetáculo. Quando tudo está muito bom eu desconfio. Será que isso pode trazer uma acomodação para o grupo, e faça com que o trabalho enfraqueça? Será que achar o espetáculo muito bom não é uma armadilha contra nós mesmo? Fico receoso, mas espero que as respostas sejam “não”.

Sou muito reticente. E a Neuza me deixa mais reticente ainda. Não sei se por medo de errar, ou de falar bobagens que eu me arrependa depois. Mas assim como eu, o espetáculo também é reticente. A conclusão da Neuza de todos seus questionamentos é continuar andando, indo pra frente. E o que fica mais forte em mim, e nela também, são as imagens bobas e sem muitos significados aparentes, como o saco plástico que voa com o vento... a rosa vermelha que me conta mentiras encantadas... as folhas secas que se despregam do tecido vermelho... uma vela que se apaga... uma escuridão... um silenciar... 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Olhar Através das Janelas de Neuza

Assim me senti nesse processo, uma menina, que observa atrás de uma janela bonita com cortinas vermelhas e babados delicados.

Eu acho que é a janela da sala... não, será do quarto?  Mas quanta intimidade, só pode ser a do banheiro. A voz de dentro diz,  “Não bobinha, é a janela da alma.”

“Menina sai dai...é feio ficar olhando”.

Mas a janela está aberta.  “Então feche agora”.  Não posso. Ela é tão mulher e eu tão menina.

Quero entrar no seu mundo. Conhecer mais sobre ela. Seu Olhar é tão meu.
Será que posso falar com ela? Com elas? Tenho tantas duvidas....

Será que você  pode me  ensinar a ser mulher? Quero saber... Como se sente com o amor? Como se nutre o coração? Como se conecta com Deus? Quero saber... Como entender a solidão? Como me entrego ao amor? Como chego no meu interior?  Como florescer? Como caminhar? Como paro de chorar?

Queria contar tantas coisas...
Sabe que tenho um pequeno bote?  Mas não sei navegar... O mar é grande e eu acho que não sei nadar, tenho medo das ondas gigantes e das  tempestades  que possam vir.  Me ensina a ser mulher? Quer ser minha amiga? Vamos navegar? 

Na minha ingenuidade achei que ela, por ser mulher, por ser madura, não teria tantas duvidas como as minhas, achava que de alguma forma quando chegasse lá, na maturidade, já saberia o caminho, já teria as respostas para as minhas inquietações, não teria duvidas. Mera ilusão.
Assim com meus 22 anos, olhar ainda de menina querendo ser mulher  iniciei minha viajem. Elas me permitiram navegar, navegar daquela janela bonita, com cortinas vermelhas e babados delicados.

Sai da poesia...

Logo de inicio, recebi uma importante função no processo de construção do espetáculo ‘’ O Olhar de Neuza’’. A  assistente do assistente de direção.  Não tão importante para o trabalho, mas muito mais importante para mim. Nesse processo estive como aprendiz, olhar, observar e simplesmente estar presente e tentar aprender um pouco com a maestria de toda a equipe. Muito mais aprendi do que contribui.  

Iniciamos o processo com algumas reuniões e discussões sobre a mulher de meia idade. Uma idade que de inicio parecia tão distante de mim.

Que mulher é essa? quem é a Neuza? Quem é Fabiana? Quem é essa mulher que cai? 
 “ uma grande solidão eu sou, sou a mulher que dividiu em sílabas a palavra solidão e com elas aprofundou seu caminho na escuridão”. A  Mulher que  Cai  de Guido Viaro.

A MULHER CAI!

Nas mãos do abração. E num misto de Fabianas, neuzas, karlas, roses, leticias e mulheres que caem, já caíram ou permanecem em uma constante queda fomos encontrando a Neuza e junto com a Neuza encontrando a Fabiana, que desabrochou em si uma linda rosa vermelha.  

Volta à poesia

Lá estava eu, observando atrás da janela bonita com cortinas vermelhas e babados delicados.

A observava , com  olhar tão triste e solitário, ela olha além das gotas de chuva  escorridas pela janela.  Seria isso a solidão? E eu sem querer sinto pena como uma dor no corpo e um aperto angustiante. Será minha a solidão?

"Nada" ela me diz em meio à escuridão.  “Eu não tenho nada”.

Nada? (Soou como um sino dentro de mim)

Mergulho no  vazio.

Quer entrar no meu vazio?

No meu?

Sai da poesia

Passamos nossa vida tentando preenchê-lo. Botox, plásticas, peitos, remédios, futilidades, parecer ser o que não somos, impressionar o outro, posses, mentiras...
O vazio fica tão cheio que não sobre nem nós mesmos.  O essencial.
Mesmo estando carregados e entulhados de coisas, não temos nada. 
De alguma maneira a Neuza veio reencontrar esse vazio dentro de mim.
Ele tem se apresentado de maneiras distintas em cada processo que me entrego.
        
No Trenzinho do Caipira  ele surge representado pelo meu vagão.  No Banho ela retorna como meu  almocharifadinho,  e no Olhar de  Neuza se apresenta como meu conjunto Vazio o nada.
         
Acho que é minha eterna busca, retornar ao conjunto vazio. Hora preenchê-lo, ora esvazia-lo, mas sempre retornar a ele.  

O OLHAR 
Alguém me disse que os olhos são o espelho da alma, o nosso olhar deve ser o reflexo da nossa alma sendo transmitido através dos nossos olhos, ou é a nossa própria alma.
       
Quero eu ter esse olhar que reflete a minha alma e transborda o meu eu, quero eu ter esse olhar que  transmite vida, quero eu ter esse olhar que adocica o mundo, quero eu ter esse olhar que vê, escuta e sente. Qual seria o meu olhar?  Um pouco cego e adormecido? Talvez.
Inspiramos o nosso espetáculo em um Olhar, no Olhar da Neusa, que olha o mundo com poesia.
Obrigada por esse Olhar.           
Volta à poesia
Ela volta para perto da janela, me conta sobre suas angustias e os primeiro calorões. Verão de 2012. A Menopausa.  

Calma Neuza, não há o que temer. É uma transformação natural, como o verão que segue a primavera e o fruto que surge a partir da flor, que desabrocha, seca, morre e renasce. 
Sai da poesia

por que esses  padrões inúteis? Que fazem da mulher um objeto modelável que deve servir para reproduzir algo e quando não podem mais produzir são jogadas fora. Por que esses padrões inúteis? Beleza, imagem, sexo,sexo. Um dia o sexo acaba! Faço parte disso? Desse padrão medíocre? Não, não quero. Neuza vem me nutrir com seu olhar.
Volta à poesia
Ela quer sair, ter um encontro com ela mesma.
"Tentei fugir de mim, mas aonde eu ia eu estava".. Ela tinha decidido parar de fugir e se encontrar de verdade. Quando eu vou fazer isso? Agora? ou no eterno amanha...

Gostaria de compartilhar uma musica, que para mim traz um pouco do processo da Neuza e da Fabiana e talvez ou pouquinho do meu.
“Hoje eu vou mudar
Vasculhar minhas gavetas
Jogar fora sentimentos
E ressentimentos tolos.
Fazer limpeza no armário
Retirar traças e teias
E angústias da minha mente
Parar de sofrer
Por coisas tão pequeninas
Deixar de ser menina
Pra ser mulher!
Hoje eu vou mudar
Por na balança a coragem
Me entregar no que acredito
Pra ser o que sou sem medo.
Dançar e cantar por hábito
E não ter cantos escuros
Pra guardar os meus segredos
Parar de dizer:
"Não tenho tempo pra vida
Que grita dentro de mim
Me libertar!"
Hoje eu vou mudar
Sair de dentro de mim
E não usar somente o coração
Parar de cobrar os fracassos
Soltar os laços
E prender as amarras da razão!
Voar livre
Com todos os meus defeitos
Pra que eu possa libertar
Os meus direitos
E não cobrar dessa vida
Nem rumos e nem decisões!
Hoje eu preciso
e vou mudar
Dividir no tempo
E somar no vento
Todas as coisas
Que um dia sonhei
conquistar,
Porque sou mulher
Como qualquer uma
Com dúvidas e soluções
Com erros e acertos
Amor e desamor.
Suave como a gaivota
E ferina como a leoa
Tranqüila e pacificadora
Mas ao mesmo tempo
Irreverente e revolucionária!
Feliz e infeliz
Realista e sonhadora
Submissa por condição
Mas independente por opinião,
Porque sou mulher
Com todas as incoerências
Que fazem de nós
Um forte sexo fraco!
Hoje eu vou mudar
Vasculhar minhas gavetas
Jogar fora sentimentos
E ressentimentos tolos.
Fazer limpeza no armário
Retirar traças e teias
E angústias da minha mente
Parar de sofrer
Por coisas tão pequeninas
Deixar de ser menina
Pra ser mulher!
Eu vou mudar!
Eu vou mudar!


Eu vou mudar pra valer” . Vanusa.

Uma Semente (querendo ser flor)

Uma semente no abração eu sou. Sinto cada trabalho como  adubo e água que me fazem crescer, brotar e desabrochar, mas sinto também que preciso fazer essa semente crescer.   Sair da posição de menina e me tornar mulher. Recebo ferramentas de cada um, que podem me modificar pra melhor, uma melhor atriz , uma melhor professora , uma melhor produtora e um ser humano melhor. Mas sei que nem sempre utilizo essas ferramentas. Bom, acho que é hora de começar a usar. Sei que depende só de mim. Sei também  que falar é fácil difícil é fazer, mas quem sabe falando serve de estimulo para eu  fazer, praticar e estar mais pronta para utilizar as ferramentas no nosso dia-dia.
O Ritual

Esquentar a água para o chá, acender um incenso, esborrifar essência pelo abração, pingar as gotas de chuva no vidro, colocar a trilha sonora, receber o público.

Acende a vela,  Soam os sinos, ela traz com sigo aquela linda rosa vermelha. O ritual inicia com a voz doce daquele anjo, será ela sua alma? Ela fica ao seu lado o tempo todo, a observando, trazendo alento para ela e para mim, como sua guia ou guardiã.  Abrem-se as cortinas e a porta de vidro com algumas lagrimas escorridas, ela se afasta, silencia, mas permite a nossa entrada em seu interior.  Me mostra suas dores, me mostra as minhas,  me mostra seus conflitos, me mostra os meus, suas ilusões e as minhas, suas fraquezas e as minhas sua solidão e a minha. Seu vazio e o meu.  Me mostra que está perdida, mas afinal, quem não está?  

Neuza, Uma Velha Amiga.
Observei por de trás daquela  janela bonita com cortinas vermelhar e babados delicados.  Assim pude conhecer a Neuza. Acho que conhecendo a Neuza, pude conhecer um pouco mais de mim, dessa menina com anseio de ser mulher. Neuza para mim, é uma amiga, mulher, que nos momentos de solidão sei que  posso  abrir sua cortina vermelha com babados delicados e simplesmente estar com ela, com elas. Perceber a sua solidão que também é minha.
Não estou só, não estamos só.
Minha busca com o olhar de Neuza.... Desabrochar em mim, aquela linda rosa vermelha que desabrochou a Neuza.
Deixo aqui, minha gratidão a Neuza. A Neuza Leticia, a Neuza Fabiana, a Neuza Karla, a Neuza Simao, a Neuza Blas, a Neuza Joao, a Neuza Julia, a Neuza Anry  e a Neuza Rose. 


“O que eu faço da minha vida?...

... Como eu continuo essa história? Até outro dia eu queria desistir de tudo. Queria até desistir de ser atriz”

A princípio acredito que não tenho muito com o que colaborar no blog que fala sobre o processo do olhar de Neuza. Esse texto fala sobre o processo de mim, que afinal faz parte do Abração, um ciclo de processos individuais e coletivos.
Não tenho absolutamente nenhuma outra atividade na minha vida além do Abração, estou aqui de manhã, de tarde, de noite.  E fui a que menos participou do processo do Olhar de Neuza. Por que será? Para fugir da Neuza, do Abração, do compromisso? Não. Para fugir de mim.

Para fugir da iminência do sofrimento do processo criativo. Para fugir das dores inerentes ao trabalho do ator. Claro, a Dire fala sempre sobre mudar a visão, o ponto de vista, que o não saber e o errar devem nos deixar felizes e entusiasmados por ter coisas novas para aprender e descobrir. Mas não é tão fácil colocar em prática. Muitas vezes penso que a Dire é realmente um ser iluminado, alienígena, que desceu pra Terra numa nuvem de camurça vermelha, sua primeira cortina, que seus glóbulos vermelhos são minúsculos atores, bailarinos, trapezistas, movendo-a exclusivamente pela arte, em cada momento essencial de sua vida. Porque não é pouco difícil. É muito difícil viver assim.
Assistir o processo “de outra pessoa” (entre aspas, porque no Abração tudo é coletivo) fez eu me sentir mal. Assisti dois ou três ensaios. Os erros, as repetições infinitas, as frustrações, que é claro, acontecem no processo, faziam com que eu quisesse abrir um buraco na arquibancada e ir embora. E as alegrias, as conquistas, os acertos? Não deu tempo de ver, saí correndo nos primeiros frames. Assisti os ensaios finais, só depois que a Dire já tinha feito picadinho da Fabiana umas milhares de vezes, e já tinham, juntos, juntado os pedaços e reconstruído mil mundos e possibilidades. E me surpreendi com a lindeza desse espetáculo. “Viu, que lindo, e como foi rápido e fácil”, pude pensar, tendo fugido da parte difícil do processo. Mas não há escapatória. Apenas adiei o processo que, então, aconteceu dentro de mim posteriormente.

“Eu sofro muito. Eu quero negar tudo e quero só ser feliz, ser feliz e só”. Sou uma pisciana, do dia 05 de março. Quem se interessa por signos e astrologia sabe o que isso significa: sofro. Sofro por tudo e por todos, choro, me esfarelo em drama, com a mesma facilidade com que me alegro. Mas não na mesma frequência. Já sofro por existência, não é necessário sequer que aconteça algo de ruim. E fui cair justamente neste mundo, de artes, de criação, de confronto com a realidade, com a sociedade, com a barbaridade da existência.  “Quanta gente consegue viver bem melhor sem procurar um caminho, nem sequer suspeitar que seja necessário acha-lo”. Mas uma vez que você toma consciência deste caminho, escondido entre os casos e acasos do destino, da vida, e do mundo, esperando por ser encontrado, não há mais volta. Ah, dilema. Ao mesmo tempo que, claro, abençoado caminho de vida, que me permite transformar este sofrimento, este sentimento, este viver, em algo que vibre com o universo, e não em mais uma receita médica de ansiolíticos, antidepressivos, antinervosismos, antichorismos, antividismos .

Mas depois de constatado esta pequena bomba que instalei em meu coração, como desativa-la? Como escapar da vontade de fugir de tudo, de desistir da vida de atriz, da vida de grupo. Digo como: não há como. Já disse, uma vez ampliada a consciência, o sofrimento é ainda maior tentando negar a existência desses caminhos. Como voltar ao status de “empregada”, trabalhar 8h por dia por objetivo nenhum? Como voltar a movimentar um sistema nocivo, corrompido, tendo consciência do poder de transformação do teatro? Olho para minhas tatuagens: porque faze-las, se a dor é quase insuportável? Tenho minha resposta: o resultado. Ser atriz faz de mim um processo ambulante, me aproxima de algo que precisamos e podemos ser. Primeiramente comparei para mim com as drogas, que causam sofrimento, mas nos viciam em seus prazeres, a tentação de olhar nos olhos da Medusa. Mas a diferença está em tornar-se cada vez mais lúcido, mais forte.
Várias vezes, quando falávamos em grupo sobre este processo, e que foi apontado o distanciamento, meu e de outro, a sugestão do que escrever era começar com “perdi a oportunidade de acompanhar um processo de criação por...”. Mas não sinto assim. Tive a oportunidade de acompanhar o processo que aconteceu dentro de mim, e que não existiria sem o processo externo do grande organismo que é o Abração, com “O Olhar de Neuza”.


E agora, pós-processo de enfrentamento de minhas próprias dúvidas, solucionei-as? Em partes sim, em partes não. Mas não nega-las foi um grande passo para LÁ dentro de mim. Ignora-las é como fechar os olhos, e fingir que se eu não vejo é porque não existe. E sei que transpassar o véu destas dúvidas, vai me permitir ir além destes limites que me impus, destas travas que o medo me coloca, e então estarei mais disponível, plenamente entregue, ao serviço sagrado de ser atriz. O servir do artista, servir a algo maior, servir a uma causa, servir a uma obra. Sem querer atropelar meus processos, mesmos os ruins, desde que não me deixe derrotar ou conformar por eles, mas que os compreenda, análise, e busque um ponto além deste, regredir jamais.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O Olhar de "Fora"

É bem estranho escrever sobre o processo do "Olhar de Neuza", porque eu estive bem distante dele. Mas foi, no mínimo, interessante. Como eu só tinha acompanhado o processo de criação do "Dorminhoco", me surpreendi e muito, porque foi um processo BEM diferente. Pra começar que o primeiro ensaio que eu realmente ASSISTI foi acompanhando a Cris Conde, isso nós já tínhamos quase 1 mês de ensaios corridos e eu fiquei com a cara no chão porque a peça estava PRONTA. Lógico que alguns meses depois ele não estava idêntico, mas estava pronto, a dramaturgia a construção das cenas, músicas. Já era um trabalho redondo.

Assisti o ensaio de novo umas três semanas depois e foi ainda mais surpreendente, era a mesma peça, mas estava completamente diferente. Estava mais delicada, mais harmoniosa, mais forte. Foi completamente arrebatador, o sentido do espetáculo pra mim foi totalmente outro, acho que foi naquela hora que eu finalmente entendi a Neuza.

Quando os elementos foram chegando (Cenário, Figurino, Sonoplastia) parecia que já estava tudo lá antes. Lógico que ficou muito mais bonito e mais bem composto após a finalização, mas era como se o espetáculo sustentasse todos os elementos por si só. Os elementos só ganharam mais significado após serem finalizados. Mas o que eu preciso falar, é da luz, pra mim esse foi o momento crucial na finalização do espetáculo. Parecia que eu tinha me drogado, aquela luz vinha ao encontro de todos os sentidos que eu tinha antes, só deixavam eles mais fortes, e o mais incrível era o fato de termos duas arquibancadas em lados opostos, dava vontade de assistir o espetáculo de todos os ângulos possíveis. Cada lugar onde eu me sentava me dava uma imagem diferente, as vezes era apenas uma cadeira a mais para esquerda ou para a direita, e mesmo assim a fotografia era outra. Eu saía de todas as apresentações e falava pro Anry: "Compadre, arrasou hein".

E no meio disso tudo eu vou percebendo de pouco a pouco de que Neuza não é uma mulher de 49 anos que está na menopausa. Neuza é uma mulher de 20 anos. Neuza é um homem de 30 anos. Neuza pode ser uma criança. Neuza sou eu. Os questionamentos, a razão da existência, as aflições, são todas do ser humano. O melhor de tudo era conversar com pessoas de diferentes idades, sexos, classe sociais. Todos se enxergavam na Neuza. "O que eu fiz da minha vida?", "Valeu a pena?", "O que eu vou fazer de agora em diante?". E daí nós percebemos que somos todos putas do passeio público que vendem aquilo que lhes dá sentido por 20 reais. É aí que tentamos procurar a rosa vermelha e revalidar nossos caminhos.

E no fim disso tudo, eu contínuo refletindo sobre o que é ser "Pobre com dinheiro pra gastar"


sábado, 21 de setembro de 2013

O PROCESSO


Fui marcada, como uma tatuagem feita a ferro e fogo. Sabia que esse processo de montagem do espetáculo O OLHAR DE NEUZA traria mudanças. Tive medo. Quis desistir de tudo. Quis desistir de ser atriz. Senti-me incapaz, vazia. Sofri. Uma sensação absurda de vazio, a noção clara do tamanho da minha solidão. Tentei fugir como de costume, mas dessa vez, o processo cobrou vida vivida e eu, não tendo mais como fugir, vivo. Empresto minhas fragilidades, minhas contradições para dar vida a esse personagem. Enfrento-me perseguindo uma centelha, às vezes fugaz, de humanidade. Quando penso que encontrei algum caminho, se no dia seguinte não recomeço do zero ele se esvai em meio a minha vaidade.

Vasculhamos nossas vidas, deparamo-nos com nossa miséria humana cotidiana, emprestando um pouco de nossas contradições ao personagem. Digo nossas vidas, pois os que fazem teatro de grupo tem a possibilidade de participar intensamente do processo e assim, a CIA DO ABRAÇÃO pôde emprestar humanidade a Neuza.

Nossos ensaios foram poucos, cirúrgicos, profundos. A consciência de que seriam poucos nos fazia entender a importância de aproveita-los ao máximo. Mentiria se dissesse que foi fácil. Foi muito difícil. Escavar abriu e expos feridas que todos os dias eram novamente escavadas. Muitas questões foram levantadas: Quem eu sou? Por que escolho ser atriz? Por que naquilo a que chamamos dor ou feiura está contido tanta beleza?  Por que faço teatro? O que dizer através desse espetáculo? Tentamos entender profundamente o que estamos fazendo, por que estamos fazendo, qual o sentido pra cada um de estarmos juntos, construindo uma obra artística. São questões que levantamos todos os dias no ABRAÇÃO.

Partimos da intuição que aliada aos nossos desejos nos impulsionam. Depois conversamos muito, sempre. Tenho o privilégio de ter uma diretora inconformada, um grupo inconformado. Esse inconformismo gera movimento, pulso de vida em nossas obras teatrais de repertório que, a cada nova apresentação, são revistas num processo de entendimento do sentido de cada uma delas e de nosso papel de artista na sociedade em que vivemos.

No começo desse novo processo de trabalho a busca foi por me tirar o chão, o eixo, o prumo, limpar meu excesso de técnica e racionalidade procurando a perda do controle, procurando a energia verdadeira para cada situação exposta pela personagem  para chegar numa mulher que está cansada, fragilizada, cheia de dúvidas, uma mulher que sente-se feia e velha, deprimida, que toma remédios que a fazem suportar a vida que leva, que num rompante de loucura e lucidez descobre quem de fato ela é. O resultado dessa busca se vê nos primeiros minutos do espetáculo onde NEUZA corre muito. Um desafio a ser perseguido a cada novo espetáculo. Um caminho que pode me levar ao acaso da respiração ofegante, da fala entrecortada pela falta de ar, da tontura, do cansaço muscular e vocal levado ao limite.

A primeira leitura com o livro “A MULHER QUE CAI”, que inspirou a criação de nosso texto, do escritor curitibano Guido Viaro me causou uma certa estranheza. A medida em que fui relendo e entendendo melhor o contexto, acabei me apaixonando pela forma contundente e ao mesmo tempo idealista e sonhadora como o Guido apresenta essa personagem. Foi um mergulho no universo onírico e existencialista proposto por ele, nos devaneios dessa mulher cheia de sonhos, ideias e desejos maravilhosos, mas que estão “encobertos pelo entulho da rotina”. O período de escolha de trechos que poderiam fazer parte de nosso texto teatral foi prazeroso trazendo-me um novo ânimo. A boa e velha segurança, algo em que se agarrar. Haviam tantas passagens interessantes pra escolher.  A amarração da dramaturgia, tecida artesanalmente, foi um momento onde várias ideias e informações foram sendo agregadas. Texto, marcas, improvisos, músicas, tudo foi surgindo buscando traduzir poeticamente o universo de NEUZA.

Descobrir quem é essa mulher que cai, que cai em si. A vida a impele a fazer uma pausa. Ela revê suas escolhas, sonha em fazer diferente, se enfrenta tentando entender o que a incomoda. Ela entende o caminho que suas escolhas, pautadas pelo comodismo burguês, a levaram. As suas escolhas foram feitas por uma mulher moldada para ser assim. Ela se descobre desconhecida, não sabe quem ela é e, neste instante de pausa, quer tentar entender-se.Neuza está em pleno climatério, período que marca o fim do ciclo menstrual, a menopausa. Ela perda a sua função social maior de mulher, perde sua capacidade reprodutiva e sexual. Lida com o desgaste do casamento, a falta de libido típica desse período, o desânimo e a depressão, a perda da juventude, a noção cada vez mais clara de que tantos anos de anestesiamento psíquico bio social, formaram uma mulher que apenas seguiu um caminho já previamente traçado pela sociedade. Quem de fato ela é?

Durante o processo tivemos ainda a oportunidade de estabelecer alguns intercâmbios importantes:
  • Com o Diretor Paraguaio Wal Mayans que esteve acompanhando todo o processo e pode contribuir através do trabalho por ele desenvolvido denominado Primigenia Teatral.
  • Com a atriz e produtora Gaúcha Rosi Jacomelli radicada na Argentina e que esteve durante este ano trabalhando na montagem de seu monólogo O MAPA DO MEU MUNDO, também dirigido pela diretora artística da CIA DO ABRAÇÃO. Sua estreia foi em julho de 2013, na Sala Simone Pontes, da Sede da CIA DO ABRAÇÃO.
  • Com o ator, produtor e diretor da Cia Yepocá de Teatro, de Belo Horizonte, através da montagem de seu monólogo, também dirigido pela diretora artística da CIA DO ABRAÇÃO, intitulado DES ESPERA. Sua estreia foi em outubro de 2013, na Sala Simone Pontes, da Sede da CIA DO ABRAÇÃO


Partilhamos nossos processos, nossa opção pela solidão do monólogo, nossas pequenas conquistas e frustrações diárias. A riqueza do encontro com a humanidade de cada artista e do que surge através da cooperação mútua. 

Também partilhamos a experiência da oficina de Primigenia Teatral ministrada por Wal Mayans. Passar por uma oficina do Wal nos fortalece. Seu trabalho, desenvolvido durante anos através de sua formação com grandes mestres orientais, sua participação em importantes grupos teatrais europeus como o teatro antropológico de Eugênio Barba e posteriormente o desenvolvimento de sua pesquisa como fundador a ONG Tierra Sin Mal e como diretor do Grupo Paraguaio Hara Teatro, nos proporciona uma riqueza e um privilégio únicos. O rigor técnico, a importância da sacralização de nosso trabalho, de repensar a sociedade em que vivemos, a necessidade de resistirmos como teatreiros que somos, de resistirmos através de nosso trabalho diário que nos fortalece e nos prepara para a vida e a morte de estar no palco defendendo uma ideia, um ideal.

 Para a sonoridade do espetáculo, desde o início, a direção tinha uma intuição, um desejo de trabalhar com fados portugueses. Posteriormente fomos entender que fado, ou destino ou fardo, tinha mesmo muito a dizer sobre o mundo de NEUZA. Certeiras  as músicas foram chegando pra ficar nos inspirando e  impelindo a buscar cada vez mais sentido para o que estamos fazendo.  Em algumas, quadras de Fernando Pessoa foram musicadas. Elas foram compostas pela Diretora musical, compositora e cantora Karla Izidro que trabalha conosco desde 2007, e que desta vez, se disponibilizou a cantar ao vivo trazendo ao espetáculo uma riqueza impar. É um privilégio dividir a cena com a Karla uma artista madura, que compartilha do nosso pensamento sobre o fazer artístico, criando uma identificação que facilita o trabalho.

As primeiras imagens sugeridas pela direção também tem muito haver com o fado. Uma mulher, melancolicamente, apenas observa através dos vidros de uma janela molhada pela chuva. Seu olhar vê longe e ao mesmo tempo se vê, olha pra dentro de si mesma. Dessa imagem surge a necessidade de trabalharmos com uma janela. Nasce nosso cenário, com objetos leves que podem ser manipulados durante o espetáculo conforme a necessidade de cada cena propondo sua resignificação. Uma janela com sua folhas que se desprendem da base e viajam pelo espaço cênico ajudando a criar um ambiente onírico. Tudo é preto e conforme a incidência de luz, esses objetos aparecem ou desaparecem, flutuam ou encontram-se amparados. Envolvendo as janelas, grandes cortinas vermelhas, que vem do teto e se estendem por muitos metros pelo chão colorem o preto. Durante o desenrolar do processo, fizermos inúmeras pesquisas de utilização desse material que, simples e versátil, pôde nós oferecer muitas possibilidades. Ao final, ficou o essencial, o que de fato poderia nós ajudar a contar essa história.  Uma rosa vermelha repousa solitária num canto do palco. Folhas secas espalhadas pelo chão dão um tom amarelado ao espaço cênico e quebram com a quase monocromia do preto, propõe uma nova textura. Quando pisoteadas elas imprimem som ao espetáculo.

O envolvimento e interesse crescente de nosso iluminador Anriaider com este projeto, trouxe ao espetáculo um desenho de luz feito a quatro mãos. Outra parceria que se firma cada vez mais na medida em que nossas afinidades se solidificam.  Quadro a quatro a luz foi desenhada por ele e pela Letícia numa proposta de utilização de baixas intensidades, muitas sombras e poucas cores.

 A ESTREIA
A sensação é de ter ganho um inestimável presente. Agradeço imensaprofundamente a CIA DO ABRAÇÃO, a cada um de seus integrantes, a todos que ajudaram a construir essa história. Foi uma estreia mágica. O público presente embarcou no espetáculo, partilhando com a CIA DO ABRAÇÃO, cada instante proposto pela obra teatral, contribuindo para materializar essa noite especial.

A partir da estreia pude começar a enxergar melhor o caminho percorrido. Percebo como tudo foi sendo construído como uma teia tramada aos poucos, artesanalmente. Foram anos desde as primeiras ideias até a estreia. O caminho que trilhamos reflete as nossas escolhas e O OLHAR DE NEUZA é fruto delas. Escolhemos trabalhar por anos em um mesmo projeto até que ele se concretize.

Nesta primeira temporada pude sentir, através do contato com diferentes tipos de público que estiveram presentes, a força da obra. O OLHAR DE NEUZA emociona, faz rir e chorar. Plateias barulhentas e desatentas vão aos poucos silenciando e a energia própria da obra se instaura. Essa obra tem o que dizer e diz. A comunicação com o público se estabelece e isso tem sido muito gratificante.

Durante a temporada continuamos trabalhando buscando entender o que acontece com o público diante da obra; o caminho que o personagem precisa trilhar para que a obra possa ser degustada pelo ator e pelo espectador a cada sessão. A busca pela inteireza e plenitude diante de cada espectador nesse momento único de fruição da obra.

Posso agora incorrer num dos maiores enganos do ator: cegar-me com tantos elogios, permitir que o meu ego seja maior do que o teatro. Para que o teatro aconteça realmente é necessário travar uma luta diária comigo mesma, a cada sessão, buscando beijar a alma dessa personagem, buscando viver, através dela, cada fragmento de beleza e poesia que essa obra propõe.

Ao final da primeira temporada sinto-me recompensada pelas dores do início do processo onde quis desistir de tudo.  Através de NEUZA tenho a possibilidade de vivenciar o sublime encontro com o sagrado. Que eu possa viver intensamente cada sessão. Que o teatro aconteça a cada sessão. Que eu mereça a graça, a honra e o privilégio de estabelecer verdadeiramente a missão de ator.  


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Olhar de Cléo Busatto - sobre


Cléo Busatto8 de setembro de 2013 22:52
Foto CHICO NOGUEIRA
Registro aqui a minha voz, como um mimo que ofereço às mulheres (e ao feminino dos homens!) fortes e lindas, sensíveis e criativas, que noite de sábado me deram um presente, O olhar de Neuza.

E, como neste micro do macrocosmo, tudo é possível, eu observadora, criei uma realidade que iria viver horas depois. O olhar de Neuza já tinha iniciado e eu nem havia me dado conta.

E agora, dizer o que? Que Letícia e Fabiana chegaram à maturidade profissional e que a coerência que permeia suas vidas, se revela como coerência com sua arte? Que a simplicidade e a economia de recursos promoveu a fartura de criatividade? Que a plasticidade cênica criou uma imagética densa e bela, que desceu às profundezas, repercutiu no ser interno e, ao emergir trouxe clareza?

Impossível se referir a este trabalho na dimensão da lógica. Análise? Interpretação? Crítica? Não. Que seja antes, e tão somente, uma lógica sensível. Só dá para falar de O olhar de Neuza pelo viés do mítico, do simbólico e do sagrado.

Paisagens

Cena 1
Eu, no meu quarto seleciono roupas para desafogar o armário. Desafogo também minha alma. Desfaço-me de máscaras que não uso mais. Quero simplificar. Bastam duas, três peças de cada roupa, para compor um vestuário. Experimento. Construo personagens. Desconstruo o personagem. Olho para mim e olho para a roupa. Esta não sou mais eu. Vai para o saco.

Cena 2
- Desculpa minha falta de jeito. Há duas semanas me preparo para vir aqui e trazer uma flor para vocês. Vim assim, destrambelhada, na corrida. Esqueci-me da floricultura. Esqueci-me do dinheiro.
- Mas você está aqui.
- Um mimo. Era só um mimo.
Lágrimas sobem para a garganta, ou descem para a garganta? Lágrima, sobem ou descem, quando querem sair? Controlo. Seguro. Que está acontecendo comigo? Por que o choro agora? O que foi ativado aqui dentro? Não sei. Não sei. Disfarça.
Ela se vai. É a anfitriã. Eu circulo pelo espaço. Sinto que algo se mexe aqui dentro, tira o sossego, tira o prumo. Bom... se fora de prumo já estou é só uma questão de me encontrar neste desnível.

Cena 3
As luzes se apagam. Uma voz robusta e doce enche o espaço. Canta um fado. Traz os fatos. Traz o choro. Engulo outra vez. Fiquem quietas, vocês todas, lágrimas, afetos, desafetos. Silêncio. Não foram convidadas para este espetáculo. Disfarço e engulo.
Ela canta. Canta o choro.

Cena 4
Subitamente uma imagem se materializa do outro lado da vidraça. Uma mulher com olhar vazio. As portas se abrem e sou convidada a entrar num espaço sagrado. Tremulam as lágrimas dentro de mim. Sei que não vou resistir. Piso em folhas secas. O outono já chegou. O outono em mim.

Cena 5
Ela fala que não quer fazer teatro. Que não é a personagem. Que é a outra. A outra. Outra. A outra em mim se agita. Quer sair. Disfarço. Controlo.

Cena 6
Entre fados e fatos se passa uma hora, duas, dez? Sei lá. Sou levada a parques, quintal de terra batida, quarto escuro e frio, precipício diante de mim. Viro puta, escrava, mestre das mestras, mulher, amante, adolescente abandonada no baile de formatura. Viro do avesso.
Mas, ela não sou eu. Ela é a personagem. A Neuza. Eu sou a outra. A que observa. Feito pássaro que olha, de fora. Mas, ela também sou eu. Ela é feita de todas nós.

Cena 7
Não sei de onde, se veio de baixo, ou de cima. Enfim, elas chegaram, grossas, salgadas e abundantes. Não resisto mais. Estou totalmente entregue ao mistério. Cadê meu lenço? Como uma mulher sai de casa sem lenços de papel?

Cena 8
A voz canta. Fado. Destino. Moiras tecendo sem parar. É noite. Uma flor. Aquela flor que eu deveria ter trazido está ali. Vermelha, sangue que não jorra mais. O vermelho sangue se materializa em panos que escorrem pelo tempo do outono. A voz canta. Doce voz.

Cena 9
Eu me desfaço e me deixo desfazer. Eu não tenho nada. Acho que ela dizia, eu não tenho nada. Eu não tenho nada, mesmo assim, trago em mim todos os sonhos do mundo.

Cena 10
A luz se apaga. O ritual acabou. Saio. E lá, onde me deixei estar, restam duas de mim. Ela, a Neuza, e ela, a Voz.

Grata.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O Olhar de Neuza - por Isabelle Neri

Não, o Olhar de Neuza não fala apenas da menopausa. Menopausa é mero detalhe para uma mulher que chega a maturidade e coloca em questão sua própria vida e suas dores. O questionamento principal de Neuza está muito além dos calorões que o corpo físico lhe presenteou. Está em viver e questionar. Questionar os passos até agora. Questionar o casamento e a própria moralidade.
–Vou virar puta! – diz Neuza num momento de grito. Neuza traz a tona o melhor que a sensibilidade feminina pode sentir. Viver e não seguir os trilhos do trem como mera personagem. Ser Neuza hoje, uma mulher madura depois do que proporcionou a sociedade, para quem já foi bela e reprodutora, está além de apenas sentir calores. É questionar para compreender onde realmente está sua felicidade.
Fabiana Ferreira conduz a cena com maestria corporal e vocal. Precisa de muito pique para compor as explosões de Neuza. Neuza é uma fera enjaulada prestes a voar e a atriz Fabiana Ferreira nos mostra o olhar dessa fera, numa representação que nos leva ao riso e ao choro. Choro por nos fazer lembrar de alguma mulher que foi Neuza ou que seremos um dia. Por um olhar de Neuza que percebemos no rosto de uma mãe ou uma tia conhecida e o pior, em nenhum momento nos demos conta que aquele olhar tinha uma representatividade de dor intensa.
O Olhar de Neuza expõe uma ferida social: a mulher depois do ápice da maturidade que sentido ela tem para a própria sociedade? Eu como mulher, beirando os quarenta, sabendo que daqui a alguns anos talvez seja uma Neuza, que olhar terei? Da mulher que apenas segue a estrada ou da mulher que questiona e sabe o que a faça realmente feliz.

sábado, 10 de agosto de 2013

PROFESSORA NEUZA - por Edmundo Cezar


Neuza me cabe?
Neuza não cabe aos homens. 
Especialmente àqueles que andam por aí despreocupadamente crendo que os indivíduos somos resultados de um monte de carbono e água.
Neuza cabe aos homens sim. 
Mas só aos inteligentes ou dispostos.

Aprendi com Neuza que sou aLuno. Um sem luz de pouca luz, macho e aprendiz.
É difícil as vezes explicar a um aluno a importância e a diferença do teatro, em relação às outras linguagens artísticas, especialmente o audiovisual, que utiliza tanto do drama e de outros aspectos técnicos que o teatro também compartilha.
Se o aluno aLuno se dispuser a sair de casa e encontrar casualmente com o Olhar de Neuza atrás do espelho entenderá, ou melhor, sentirá, a sutil diferença da película e do calor teatral. Frieza e calor. A morte a vida.

Aprendi com a luz de Neuza. 
Ângulo, cor e intensidade a serviço do espetáculo. Foi assim que aprendi com um mestre, que meu olhar devia ser treinado a perceber esses aspectos na iluminação cênica. Mas como bom mestre ele deve ter ocultado ao aLuno outros tantos segredos que comecei a desconfiar ao ver Neuza. 

Não há luz de frente, excetuando-se uma lâmpada de tungstênio para a plateia, que me cegava ao sentar na exata cadeira em que me sentei. 
Neuza me mostrou que a luz de frente cega, por isso ela usa ângulos “indiretos” para revelar os contornos. O que vem de frente é tênue. Neuza não quer mais se cegar, quer ver a luz do lampião no fundo do espelho. 
Se a área da encenação fosse fragmentada, o aluno veria suas partes desenhadas no chão, iluminadas pelo que não é obvio. O bobo colocaria o refletor de frente, mas Neuza, que não é boba nem nada, usa e abusa das laterais, contras luzes que não sei bem de onde vieram, ausentes de cores, levemente aquecidos alguns e uma frieza culpada pelo calor que provoca quando, quase no final, ilumina o sentimento de Neusa materializado na rosa vermelha abandonada entre as folhas secas, com um lilás disfarçado de vermelho azulado.

Como o aLuno se iluminou com o cenário de Neuza! 
Tão pouco. Tão exato. Tão útil. Tão servil.
Óbvio seriam as folhas secas que dizem a emoção que o tempo passou. Mas Neuza não é óbvia.... quilos e quilos de folhas secas. Quanto pesa o sentimento passado e remoído? Como chumbo? Quanto pesa? 
Neuza caminha com folhas secas até os joelhos e com seu passado até o pescoço. Claro que as folhas não chegam aos joelhos, mas ali também não há chão para caminhar. Há sentimentos e passado... me deixem em paz com minhas imagens....

Porta, espelho, janela, grades, cortinas, arara, tecidos, roupas, objetos. Aprendo com Neuza que objetos em cena são para serem usados, isso já sabia. São para serem reinventados, também sabia. Mas aprendi o que isso significa quando é feito de maneira intensa e verdadeira. De verdade. Verdadeiro. Com verdade.

Quem veio primeiro, a luz ou o cenário de Neuza? Suas janelas me pedem luz, seus espaços me indicam luzes, através dela, a luz, o tempo, mas principalmente, a dor, dureza, tentativa de ser feliz, busca... Que achado tão instigante as grades de Neuza desenhadas nas folhas. Quis sentir em mim mesmo seu desenho, mas que tolo, eu era apenas espectador de Neuza. Neuza me ensina que a boa luz que ilumina é o encontro das boas sombras que ela oferece.

Na maioria das peças que o aLuno vi, em que músicos participavam ao vivo, saí com a plena certeza de que seria mais econômico um bom CD gravado com as canções. Em pouquíssimas, contadas nos dedos de uma única mão, tive convicção de sua utilidade. Neuza adiciona mais uma a minha lista.

A Neuza do espelho canta, encanta e faz parte do show. A Neuza do espelho. Trazendo luz e vida (da platéia) do fundo do reflexo de Neuza. A Neuza que ela queria ver no espelho. Vestida, bela, feliz, realizada. A voz que Neuza queria ter. 

A professora Neuza foi minha professora de interpretação. 
Eu, aLuno de atuar, aprendi com ela o que é ter o medo e a coragem de estar em cena. De verdade. Silêncio, pausa, subtexto, corpo. Espero que meus alunos vejam isso tudo.

Sem mostrar um peito, sem revelar uma bunda, sem abrir duas pernas, Neuza estava nua. Que coragem. Tenho medo só de pensar em ter essa coragem. Ser Neuza e você mesmo em cena, revelar a personagem e revelar-se junto... santo deus do teatro: protejei-me.

Professor é quem professa sua crença em público. Neuza faz isso do começo ao final. Não tenta me enganar. Professa sua fé de ser artista e de despojar-se no fazer.

Neuza, em sua encenação, me revela que escolher não é um verbo que se conjuga isolado. É melhor quando se escolhe junto. Mentirei se dizer que não me chocou a Neuza desbocada. Meu coração só voltou ao normal quando num ultimo xingamento Neuza retornou às suas reflexões. Ufa! Passou o medo do belo se embrenhar pelo grotesco.

Esperei um grande final, um grande grito, uma grande coisa. Que tolice. Se a vida não acabou como pode a peça acabar? Neuza vai para o espelho e vamos atrás. É inevitável aplaudir de pé. Inevitável.

Aprendi com Neuza sobre as mulheres. Sobre a mulher que quero ser em outra vida, cada vez mais próxima, sobre a mulher que tenho do meu lado, suas dores, seus medos, seu pensar.

O aLuno, aprendi que no teatro o humano se encontra com o humano e Neuza me ensinou como isso se dá.

Quero muito que meus alunos vejam o Olhar de Neuza na frente do espelho. Eles me chamam de professor. Que tolos. Talvez com Neuza desconfiem que sou apenas um aLuno.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Através do olhar de Neuza - Denize de Lucena.

Há pessoas que passam a vida à espera de que a felicidade lhe venha bater à porta. Que, num repente, os ventos mudem de direção e uma luz, numa fresta que seja, possa trazer um alento, arejando o ambiente e, com ele, um cômodo qualquer perdido entre o sótão e o porão, num espaço que, sem nos darmos conta, foi se formando dentro de nós.
Como se uma voz ao longe nos chamasse sem precisar ao certo ser uma cantiga de ninar ou um lamento de morte: um hiato, um instante de suspensão como se alguém, de posse do controle remoto, num gesto banal, simplesmente, parasse o tempo.
Nesse instante que não é mais o ontem, não ainda o amanhã, mas que, parado, deixa mesmo de ser, e se transforma num não-ser, um não-ser porque estando fora não pode entender o que se passa por dentro, e não sendo ação, se torna negar-a-ação.
É isso! É o que os olhos através da vidraça parecem dizer num silêncio que grita. Sim, não é delírio, O silêncio estampado nos olhos envidraçados por trás da vidraça pouco iluminada grita alto, quase insuportável.
E nós, meros espectadores, talvez num átimo de lucidez, nos damos conta de que é tarde de mais. O olhar que grita, em silêncio, envidraçado, nos atraiu, sem que possamos mais recuar. É um canto de sereia num olhar de Medusa.
E nós, agora atores nesta história, autômatos sob o olhar vazio que nos atrai, iniciamos a procissão, e vamos ocupando nossos lugares, ouvindo o partir das folhas secas que nos resgatam na memória impossível de precisar o momento exato, um convite a vasculhar, ou seria vasculhar-se?
Tarde de mais. Nova escuridão nos mantem em alerta diante do imprevisível. E uma voz que talvez viesse de dentro de nós mesmos nos atesta o instante de pausa do qual não podemos fugir. A pausa que nunca demos, porque a rotina da vida nos impõe um eterno ir, porque sempre temos inúmeros compromissos e um sem número de prioridades inadiáveis.
Impossível fugir agora! O controle remoto permanece em pausa. O olhar é agora algumas dezenas de olhares aos quais tememos encarar, mas que estão lá, e nós sabemos.
Não encarar, tentar fugir, não dar vazão ao que ficou por tanto tempo sob o controle. Controle. Passamos o tempo todo tentando ter o controle das nossas vidas e não percebemos que vamos aos poucos perdendo o controle de nós mesmos.
Um olhar se sobressai, e assusta, e intimida, e nos petrifica, porque o reconhecemos ou melhor, desconhecemos, pois é o nosso olhar que tomando vida própria se desloca do nosso rosto e vai se alojar no rosto de Neuza refletido no espelho. Um espelho sem face, que por isso mesmo nos atravessa.
Numa tentativa de fuga, buscamos voltar à rotina, à segurança da rotina com a qual nos habituamos, a rotina que nos coloca, numa zona de conforto milimetricamente limitada. Ah, é tão mais cômodo ter fronteiras determinadas! A rotina nos aprisiona, é verdade, mas ao mesmo tempo nos protege. -Nos protege?! - sim, nos protege. -De quê? De nós mesmos.
É tão mais fácil manter mente e mãos ocupadas, ter o ritmo do relógio para acompanhar, ter coisas importantes a fazer, em uma palavra, ser útil. -Pra quem?!- pra todos, pra sociedade, pra família, pros outros. -Pra si mesmo?! - Não. Não é importante ser útil pra si mesmo. Não há tempo para essas bobagens. Que importa?! A quem importa?!
Gostamos de tantas coisas que já desgostamos para depois tornar a gostar. Quem se importa?! O quarto arrumado, a comida feita, o lixo jogado fora. Tudo feito que nunca foi percebido porque só é visível o que se deixou de fazer.
Suspensos na pausa do tempo, ao mesmo tempo abrimos as portas para qualquer tempo, Perpassamos o tempo corrido e nos deparamos com a realidade de um tempo que foi percorrido mas que não foi vivido e que, talvez, já não haja mais tempo de se viver.
O que foi que fizemos do nosso tempo? O que foi que o tempo fez de nós? Ainda há tempo?! Quantas vezes desejamos parar o tempo?! Tantas outras pareceu se arrastar teimoso, a nos contrariar. As marcas no rosto incontestáveis gritam que o tempo passou e nós, que passamos a vida a esperar pelo tempo certo, nos damos conta dos últimos grãos de areia que se escoam rápido na ampulheta. Será tarde de mais?!
O enquadramento se repete, se multiplica, ora aqui, ora ali, apontando que a jornada está terminando. -Terminando?! - Como assim, se corremos uma vida inteira para garantir o momento de aproveitá-la?! Justo quando a rotina e os compromissos inadiáveis já não fazem mais parte do nosso dia?! Agora, que temos todo o tempo do mundo, o mundo não tem tempo pra nós?! Onde, em qual curva do caminho deixamos nossos sonhos e nossos desejos serem silenciados e nem se quer nos demos conta?! Que personagem é esse que habitamos como os grande bonecos carnavalescos, e que nos escondeu até de nós mesmos?! De quem são estes olhos que o espelho teima em refletir mas que não conseguimos re-conhecer?!
Um personagem à procura do ator, tentando dar vida a peças de figurino, objetos e partes de cenário que se negam à função.
Os risos logo se fazem ouvir. Difícil precisar o significado. Riso nervoso, disfarçado, riso de quem sabe mas não gostaria de lembrar que também terá o seu instante de pausa. Talvez já o tenha tido, até. Não consegui ri. As lágrimas fecharam as comportas impedindo que ele pudesse se quer nascer. O espelho não mente. O tempo é implacável. Não há mais tempo a perder.
Ninguém sabe quem é, e o mundo carece de príncipes meninos que surgindo do nada, no deserto da nossa alma, nos possa ver como únicos.
O tempo passou. E num momento nos damos conta de que apenas a nossa vida está em pausa. O vento sopra, crianças correm, barcos pedalinhos atravessam o lago e sacos de plástico bailam no ar insensíveis ao nosso momento.
O olhar se perde ao longe. Vaga. Como o barco sob a espuma. Os olhares se cruzam, Se reconhecem. Se cumpliciam. Se deixam abandonar. E nós, já não meros espectadores, nos cumpliciamos também e nos jogamos ao mar, novamente em procissão.
Como disse o poeta: “Navegar é preciso. Viver, não é preciso.”
Parabéns à Fabiana por se fazer de mar e navio. Parabéns à Carlinha por se fazer de vento e vela. Parabéns à Cia. do Abração por pintar na tela um crepúsculo que nos convida a lembrar que a noite é prenúncio da alvorada.

Um grande abraço,
Denize de Lucena.